sábado, 23 de fevereiro de 2008

O homem indispensável

Expresso, 23.02.2008
Miguel Sousa Tavares



Nunes Correia é a chave do desenvolvimento económico do país. Há quem tenha pensado que Sócrates se esqueceu de o remodelar na recente mudança da equipa governamental. Nada mais errado: Sócrates não só não se esqueceu como ainda tem em alto apreço a compreensão que o seu ministro do Ambiente e do Território tem revelado, sem desfalecimentos, para com a necessidade de crescimento da economia, do investimento estrangeiro e da criação de emprego. Sócrates tem uma fé inabalável na construção civil e no turismo como motores do desenvolvimento económico. Tudo o resto - incluindo algumas reformas que são de louvar - poderá produzir efeitos a médio ou longo prazo, ou até mesmo falhar. Mas a construção e o turismo, acredita o primeiro-ministro, são as únicas coisas que lhe garantem resultados a curto prazo - mesmo que a longo prazo coloquem problemas graves de sustentabilidade ao país. Mas, a longo prazo, estamos todos mortos...

A fé do primeiro-ministro e a sua determinação de «bulldozer» não consentiriam a coabitação com um ministro do Ambiente e do Território que ousasse preocupar-se com o ambiente e o território. E nisso Nunes Correia tem sido o mais dócil e compreensivo dos ministros. Em trinta anos que já levo a olhar para a coisa, já vi muitos ministros do Ambiente: bons, maus, sofríveis, corajosos ou acomodados. Nunca conheci nenhum cuja inutilidade fosse tão absoluta. O problema é que, quando se é ministro do Ambiente e, para mais, de um governo que apostou em transformar todo o património natural que resta em ‘território PIN’, ser-se inútil não é ser-se inócuo: pelo contrário, é ser-se deliberadamente útil ao crime projectado. Os investidores projectam, Nunes Correia assina e a obra nasce. Nasce em qualquer lado, mas sempre e de preferência onde era suposto não poder nascer: na Rede Natura, em áreas da Reserva Agrícola ou Ecológica, nas rias, nos sapais, no montado ou até em cima de grutas ou promontórios (!), como sucede no Algarve. Para enganar os tolos, dizem o mesmo de sempre: que isto não é turismo de massas, mas sim de qualidade. Mas basta olhar para a lista dos investidores com projectos já aprovados para Alqueva, e onde se incluem alguns dos piores patos-bravos do país, para perceber o que eles entendem por qualidade. Para acabar de vez com a sua linda obra só falta a este Governo e a este ministro darem a machadada final que têm em estudo: transferir para as autarquias a faculdade de decidir a delimitação das Áreas de Reserva Agrícola e Ecológica. Seria como confiar a um assaltante de bancos a guarda das reservas de ouro do Banco de Portugal.

Esta semana que passou foi particularmente exigente para o pobre ministro do Ambiente. Na segunda-feira e no rescaldo, mais do que previsível, das chuvas em Lisboa, sua excelência descobriu de repente que as mesmas autarquias a quem quer confiar a guarda da natureza continuam a autorizar a construção em leitos de cheia e a impermeabilização selvagem dos solos. No dia seguinte teve de emendar a mão, ao aperceber-se de que estava a enfrentar poderosos cabos eleitorais do partido que lhe abriu as portas do Governo, e veio dizer que, afinal, a culpa é colectiva. Mas há-de morrer solteira, até à próxima cheia.

A seguir foi a Madrid, ouvir os queixumes da sua homóloga de Espanha - o país que mais água gasta e desperdiça em toda a Europa e, por isso mesmo, a braços com nova seca. Aceitou que os caudais mínimos dos rios internacionais, até aqui fixados ao ano, passem a ser fixados ao mês, à semana e até ao dia: cheira-me a marosca dos espanhóis. Depois, e como os espanhóis precisam de continuar a garantir o abastecimento de água às centenas de campos de golfe do sul de Espanha - o tal ‘turismo de qualidade’ que queremos copiar - o ministro aceitou também passar a bombear água de Alqueva para Espanha. Notem bem: com a água da barragem paga pelos portugueses, vamos fornecer água aos regadios intensivos da Andaluzia, para que eles depois nos vendam os seus produtos agrícolas a preços que esmagam a concorrência dos nossos. A seguir, declara-se que a nossa agricultura não tem futuro e avança-se para os golfes e os aldeamentos turísticos ‘de qualidade’... Infelizmente, parece que não ocorreu a esta alma generosa perguntar à sua colega espanhola o que é isso de uma refinaria que consta que querem fazer em Badajoz, mesmo a montante... da água de Alqueva.

Mal chegado de Espanha, e eis que Nunes Correia se depara com o triunfo da providência cautelar que mandou suspender as obras do projecto Costa Terra, um investimento suíço para Grândola - o primeiro dos celebrados projectos PIN para o litoral alentejano. Uma chatice dos diabos: 578 milhões de euros de investimento, 2200 camas turísticas e, garantem os promotores e o Governo, 1260 postos de trabalho directos e mais 3000 indirectos (a propósito: ninguém acha estranho este número - dois empregados por cliente?). E se os outros projectos levam o mesmo destino, porque é que o ministro achou que um PIN vale bem uma Rede Natura?

Na 5ª-feira, para ajudar à festa, a Universidade do Algarve divulgou as conclusões preliminares de um estudo sobre as consequências que poderia ter no Algarve um terramoto seguido de tsunami, como o de 1755: 3000 mortos, 27.000 desalojados, metade das construções do Barlavento inundadas e destruídas. Escreveu-se no relatório que “os exemplos recentes do Sudoeste Asiático não fazem temer os promotores imobiliários, que continuam a construir blocos de apartamentos e empreendimentos turísticos em cima de falésias e linhas de água, ignorando os alertas de perigo e os exemplos do passado”. No silêncio do seu gabinete, meditando em tudo o que já foi aprovado no seu consulado, sua excelência deve ter desejado ardentemente que o tsunami do Algarve seja como a grande cheia prometida para Lisboa e Vale do Tejo: que, quando vier, já ninguém se lembre de um tal de Nunes Correia.

Mas há uma coisa de que eu me lembro ainda: da luta titânica do sr. ministro para salvar as dunas da Costa de Caparica, no ano passado. Dias a fio, as televisões passaram imagens de camionetas e escavadoras a colocarem areia afanosamente sobre as arribas em cima das quais repousava um restaurante, em precário equilíbrio. Dir-se-ia que o ministro fazia depender da sobrevivência daquele restaurante a sua entrada na imortalidade. Esta semana, vi publicada uma fotografia das obras de um restaurante (não sei se o mesmo) na mesma duna salva por Nunes Correia. E não é que a duna tinha sido toda escavada e de novo destruída para a obra do restaurante? “Pelo amor de Deus! - pensei para comigo - tenham respeito pelo ministro!”. Se não se salva a duna da Costa de Caparica, salva-se o quê - o pobre e eterno lince da Malcata?

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